segunda-feira, 22 de março de 2010

Um outro mundo já foi bem melhor


Um espectro ainda ronda o mundo: o espectro de Seattle.

Ronda, porque na verdade não mora em Seattle. Ele não mora em parte alguma, e certamente não em Porto Alegre.

O nome daquela cidade americana marca apenas o lugar de sua primeira aparição: um fantasma sem pátria e sem rosto. Seu rosto, ora coberto pelo pasamontañas dos Zapatistas, ora por um capuz preto, por um boné dos Sem-Terra ou por uma bandeira, não existe. Não existe porque, na verdade, não é um rosto: o nome desse fantasma é legião. Seattle não foi uma assombração, foi um assombro: o espanto e a alegria de descobrir que éramos parte de uma multidão de lutas, de sonhos; de recusas ao poder destrutivo do capitalismo e de desejos de outros mundos. De descobrir, nesses bilhões de diferentes rostos, palavras e bandeiras, a força que seria capaz de encontrar, na pedra bruta do mundo que se recusava, as formas de um outro que era possível.

Foi esse mesmo assombro que, rodando o mundo de boca em boca, chegou a Porto Alegre há nove anos. (Nove, não dez; é só fazer as contas.) Não veio por acaso, mas porque aqui se vivia uma experiência política que também apontava para um outro mundo – e também, sejamos francos, porque aqui lhe ofereceram casa, um terreno fértil para que essa transposição fosse viável. Aquele que havia sido o “espírito de Seattle” pôde se transformar por alguns dias em “espírito de Porto Alegre” graças a um pesado apoio institucional e a redes e articulações que passavam por dentro dos governos municipal e estadual, grandes ONGs e organismos de financiamento internacionais.

Bons tempos, aqueles, em que um outro mundo parecia ao mesmo tempo próximo e distante. Distante, porque as ambições de então eram bem maiores; próximo, porque a força que as sustentava também era.

Mas dessa transposição do espírito de Seattle ao espírito de Porto Alegre resultaram várias confusões que, nas edições mais recentes do processo FSM, ficaram mais claras. Dizer que “não haveria Fórum sem o PT, sem os partidos, sem o governo” significa apenas que montar um evento tão custoso não seria possível sem os aportes financeiros que essas relações possibilitam. Seria tão ou mais verdadeiro dizer que não haveria PT, partidos ou governos progressistas sem as forças e processos constituintes que os alimentam.

Cada vez mais, os hoje “pais” e “mães” do FSM parecem querer convencer a si próprios e aos outros que os governos progressistas da América Latina são a realização completa dos desejos de dez (ou nove...) anos atrás, à revelia das múltiplas e diversas vozes do processo FSM. Sim, esses governos são “nossos”, no sentido de que foram nossas energias e sonhos que os puseram onde estão. Suas conquistas – que são muitas e importantes – são nossas, e temos todo o compromisso em mantê-las. Mas não existe um governo “nosso” no sentido de que nossos desejos e ambições possam ser esgotados por qualquer administração. Pelo contrário: o momento em que parece que “chegamos lá” é justamente o momento de seguir empurrando-os adiante, por dentro quando possível, por fora se necessário.

Um espírito não morre: segue assombrando os vivos até que estes lhe dêem o que exige. E para isso, ainda falta, sempre falta muito. Nesse sentido, portanto, a avaliação que fazemos aqui sobre o FSM se aplica igualmente ao ciclo eleitoral em que o Brasil vai entrar agora: a questão vai muito além de um plebiscito entre esse ou outro governo, esse ou outro partido, e trata de identificar onde estão as reais dinâmicas de transformação social hoje, qual espaço elas podem ter em qual governo ou partido, e como fortalecê-las, para além da questão meramente eleitoral, na sua capacidade de atuar “dentro se possível, fora se necessário”.

No final das contas, o grande problema é a confusão que o processo FSM quis manter desde o início: buscando incorporar o “espírito de Seattle”, ele queria apenas ver seu próprio rosto no espelho. Confundiu o espírito com o médium. Graças a isso, pode agora tentar sugerir que são aquelas forças que o organizam que representam a única possibilidade de um outro mundo. Um erro fácil de manter, considerando que ninguém mais possuía os recursos que o FSM possui; mas cujas conseqüências são cada vez mais perigosas.

Em primeiro lugar, porque os recursos que sustentam o processo FSM são recursos que fazem falta à organização dos movimentos e redes que seguem lutando pela transformação desse mundo. O FSM se torna, para os movimentos sociais, aquilo que a família Barreto é para o cinema ou os medalhões da MPB são para a música: buracos negros de financiamento, "donos do campinho", eternas "figuras representativas" pelo simples fato que não deixam ninguém nem nada mais aparecer. Cada vez mais, muitos grupos participam do FSM por obrigação, porque “quem não é visto, não é lembrado” e porque muitas vezes é mais fácil conseguir recursos para organizar uma atividade dentro de um Fórum (e aproveitar para fazer outras articulações) do que para organizar aquilo que estes grupos realmente precisam. O FSM é a grande vitrine, mas não o melhor espaço para organizar as lutas em que esses grupos estão presentes.

Por que o FSM não se presta a isso tanto quanto deveria? Porque, em segundo lugar, o seu formato se esgotou, e hoje gira em falso. Desde o início, parecia esquizofrênica a divisão entre as trocas de experiência nas atividades auto-gestionadas e as grandes plenárias onde grandes nomes (normalmente intelectuais sem contato com qualquer base social especifica) falavam das "grandes questões". Sempre que se discutia os problemas desse formato, era para forçar uma falsa escolha: ou o Fórum deveria ser feito unicamente de trocas de experiências (porque essa seria a única maneira de “representar”, não representando, sua base), ou as grandes plenárias deveriam ter poder de decidir a agenda dos movimentos. A opção é falsa porque o verdadeiro problema está no meio. Não usar um espaço como o Fórum para a construção de agendas coletivas e para reforçar os processos e lutas que já estão em curso é um enorme desperdício de recursos. Mas uma agenda que seja apresentada “de cima para baixo” – por indivíduos que falam sem ouvir e que não representam ninguém, ou sem partir de uma leitura das lutas e processos já existentes – já nasce morta. (Basta ver o Manifesto de Porto Alegre de 2005, http://pt.wikipedia.org/wiki/Manifesto_de_Porto_Alegre, e o Apelo de Bamako de 2006, http://resistir.info/africa/resume_appel_bamako_p.html)

O problema nunca foi escolher entre “dispersão” e “direção”, mas desenvolver os formatos que permitam a uma agenda ser construída a partir das lutas que já existem, das demandas e necessidades que estão postas na base social de cada edição do Fórum – ao invés de uma vaga lista de desejos descrevendo como poderia ser outro mundo. Trata-se de produzir uma “direção” através de mecanismos que identifiquem as “direções” em que a base já se move. “Mandar obedecendo”.

Mas, em terceiro e ultimo lugar, está cada vez mais claro que FSM foi sequestrado por seus “pais” e “mães”, um grupo fechado de organizações (e, cada vez mais, indivíduos) que não tem nenhum outro capital político ou representatividade a não ser o fato de organizarem o Fórum. Isso ficou evidente na maneira como tentou-se, em Porto Alegre, fazer passar por fórum mundial o que era um fórum regional (através da marca “Fórum Social Mundial – 10 anos”, o seminário organizado pelo "GRAP - Grupo de Reflexão e Apoio", ou seja, a Associação de Pais e Mães do FSM).

Desde sempre o processo FSM aparece, por um lado, como uma marca viral e open source (uma idéia que é reapropriada de diversas maneiras e ocupada por grupos que não tem nenhuma relação com o conjunto original de organizadores) e, por outro, como uma marca proprietária (através da qual esse conjunto de organizações pode decidir os rumos do processo, quem entra nele, e como). Quanto mais alguns tentarem tornar-se os únicos donos da marca FSM, mais ela perderá sua capacidade de mobilização e seu poder viral; quanto menos poder viral, menos valor terá a marca proprietária.

Num momento de crise, em que seria importante ter um espaço internacional de coordenação, é cada vez maior a tendência de que o FSM – por culpa de seus “pais” e "mães", que viraram "donos" – perca a identidade com qualquer base social e torne-se uma irrelevância política. Uma máquina de captar recursos (frequentemente públicos), um espaço onde se fala muito e se faz pouco, onde a luta não é apresentada por quem a faz mas por "intermediários" que a diluem para "fazer média" com os "patrocinadores". Não mais o médium pelo qual fala o espírito de Seattle, mas um charlatão fazendo o jogo do copo.

Se isso acontecer, esgota-se o FSM, mas o espírito segue em frente. O espírito de Seattle, de Porto Alegre, de Cochabamba, de Gênova, de Chiapas – de toda a parte e de lugar nenhum – é indiferente aos corpos pelos quais ele passa, as instituições em que se manifesta, as palavras pelas quais ele fala, as bandeiras em que se agita. Ele segue rondando, e inventa seus próprios caminhos. Quando alguém acha que o aprisionou, ele surge em outro lugar.

A sensação de empobrecimento que o processo FSM transmite hoje vem justamente do fato de que, quanto mais o FSM tenta fazer-se passar pelo outro mundo, mais o outro mundo passa por outra parte; quando mais vira um fim em si mesmo, sem incorporar as forças e dinâmicas atuais que se opõem ao neoliberalismo, transformando-se apenas no capital de giro de um cartel de operadores políticos, mais o espirito se descola para seguir vagando.

Neste exato momento, várias novas lutas começam a ferver em diferentes lugares. Seria muito importante que elas encontrassem um espaço de articulação internacional, mas é provável que esse espaço não seja o FSM, cujo horizonte e ambições hoje parecem cada vez mais pobres. Um outro mundo segue necessário; mas, no FSM, um outro mundo já foi bem melhor.


Esse texto foi escrito por um grupo de pessoas que participou de vários momentos do processo FSM na condição de ouvintes, organizadores, voluntários, organizadores de atividades auto-gestionadas e painelistas. Se não nos identificamos, é porque acreditamos que muitas pessoas possam se identificar com nossa avaliação e trabalhar a partir dela – o que torna nossa identidade irrelevante, e faz com que o mais importante seja falar abertamente o que muitos já estão pensando.